O que a pessoa sente quando morre?

Por: Diário da Saúde  Data: 20/12/2022 às 20:05

A escuridão, o fim das dores, a saída para a luz e, em seguida, uma sensação de paz são alguns dos elementos que compõem o imaginário popular sobre o que acontece quando alguém morre. As religiões têm suas respostas, os escritores exploram o tema com criatividade.

Mas o que a ciência diz sobre o assunto?
Recentemente, um estudo científico inédito mostrou que a consciência da pessoa não morre imediatamente quando o coração para de bater. As pesquisas comprovaram que experiências como ver passar a vida diante dos olhos ou ter a sensação de estar saindo do próprio corpo não são alucinações.

O estudo encontra-se em fase de revisão por outros cientistas para sua publicação completa, o que deve ocorrer em 2023.

Lucidez em paradas cardíacas
O estudo, conduzido pela Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, concluiu que uma a cada cinco pessoas que sobrevivem à reanimação cardiopulmonar depois de uma parada cardíaca consegue descrever experiências de lucidez sobre a morte que ocorreram enquanto elas estavam aparentemente inconscientes e sem batimentos cardíacos.

“Ao longo da história, observamos a morte com base na convenção social de que havia uma linha entre a vida e a morte e que, depois de cruzá-la, não havia retorno,” explica o professor Sam Parnia, diretor do estudo apresentado nas recentes Sessões Científicas 2022 da Associação Norte-Americana do Coração, em Chicago, nos Estados Unidos.

“Nos últimos 60 anos, este conceito foi colocado em dúvida porque a descoberta da reanimação cardiopulmonar permitiu devolver a vida a algumas pessoas que, do ponto de vista biológico, haviam entrado na morte,” segundo ele. “Essas pessoas vêm relatando experiências há mais de 60 anos e existem milhões de pessoas em todo o mundo que contaram as mesmas experiências.”

Mas, durante anos, essas histórias foram consideradas simples alucinações, truques do cérebro ou experiências similares às induzidas pelas drogas – até que a pesquisa atual demonstrou que essa comparação é errônea.

Os pesquisadores estudaram 567 pessoas que receberam reanimação cardiopulmonar após uma parada cardíaca durante sua hospitalização entre maio de 2017 e março de 2020, nos EUA e no Reino Unido. Destas, menos de 10% sobreviveram.

“É preciso entender que a parada cardíaca não é um problema do coração,” afirma Parnia. “É apenas um termo médico para designar a morte.”

Experiência de quase morte

Do grupo analisado, 85 pessoas puderam ser estudadas com monitoramento cerebral ideal – o maior grupo já pesquisado até o momento. Os pesquisadores também enfrentaram o desafio de instalar todos os mecanismos médicos necessários para monitorar o cérebro.

Para conduzir este estudo, eles usaram, de um lado, a oximetria cerebral – uma técnica não invasiva para monitorar alterações do metabolismo cerebral de oxigênio com base na tecnologia de espectroscopia de infravermelho próximo. Nela, são emitidos fótons próximos ao infravermelho na pele frontal do paciente. E, por outro lado, foi utilizado um aparelho portátil de eletroencefalograma.

“A parada cardíaca é uma emergência. Ela ocorre muito repentinamente e sem aviso prévio,” afirma Parnia. “Normalmente, as equipes precisam chegar em cinco minutos, entrar em meio à emergência e colocar todos os aparelhos. Por isso, coletar os dados, na verdade, é um desafio.”

Parnia é diretor do primeiro laboratório de pesquisa do mundo dedicado a melhorar os cuidados de reanimação e explorar o que ocorre na mente humana durante e depois de uma parada cardíaca.

Estudos anteriores em animais haviam demonstrado que eles apresentam ondas de atividade elétrica no cérebro, no exato momento depois da parada cardíaca.

Já outro estudo apresentado em fevereiro de 2022 analisou a atividade cerebral de uma mulher no exato momento da sua morte. Foi observado um aumento repentino do que se chama de atividade cerebral gama – as ondas que são ativadas quando uma pessoa consciente recupera recordações e processa mentalmente essas informações.

Com esses antecedentes, a equipe de Sam Parnia pretendia responder duas perguntas: Quais são as experiências das pessoas quando o coração para de bater e elas são reanimadas, e saber se é possível encontrar marcadores cerebrais que confirmem os relatos de pessoas que afirmam ter experimentado consciência lúcida.

Mas, acima de tudo, eles procuram distanciar-se da expressão “experiência de quase morte”. Na opinião do cientista, essa expressão foi mal utilizada ao longo da história para descrever inúmeros tipos de ocorrências que nada têm a ver com a morte e nem mesmo apresentam similaridade entre si.

“Algumas pessoas usam a expressão ‘experiência de quase morte’ para falar de sonhos. Outras, para falar do consumo de drogas,” indica ele. “Para nós, trata-se de experiências de morte real. Primeiro, porque os corações pararam de bater e, além disso, porque as pessoas se dão conta de que haviam morrido quando regressam.”

A diferença entre as recordações do coma e da morte
Muitas vezes, quando as pessoas são ressuscitadas por reanimação cardiopulmonar, elas permanecem em coma por dias ou semanas. Este lapso de tempo poderia causar inúmeras recordações e a pesquisa tratou de diferenciar o tipo de recordações que são formadas.

“Estas pessoas podem descrever todo tipo de coisas diferentes que foram chamadas erroneamente de experiências de quase morte, mas provavelmente são distintas,” explica Parnia. Por isso, os pesquisadores separaram os dois grupos.

“Concluímos que existem diferentes experiências que ocorrem claramente em dias e semanas após a reanimação, geralmente quando a pessoa está começando a despertar do coma, de forma que elas não têm nada a ver com a experiência da morte,” afirma ele.

Ainda assim, a pesquisa descartou que se tratasse de outras vivências, como sonhos.

“Todo mundo tem sonhos aleatórios, que são todos diferentes,” segundo Parnia. “Mas, com a experiência da morte, as pessoas mencionam cinco temas principais, mesmo que não se conheçam, e esses temas são maravilhosamente agrupados.”

Esses grupos são: avaliação da vida, sensação de retornar ao corpo, percepção de separação do corpo, percepção de se dirigir a um destino e retorno a um lugar que é percebido como lar.

Esta foi a primeira parte do estudo. “Assim pudemos demonstrar que, essencialmente, a experiência da morte não é igual às alucinações, delírios ou sonhos,” explica o pesquisador.

O segundo passo foi instalar monitores cerebrais nas pessoas para procurar esses marcadores cerebrais da consciência lúcida. Foi assim que os pesquisadores descobriram que, até uma hora depois de receber a reanimação cardiopulmonar, havia sinais de atividade cerebral de alto nível – as chamadas ondas alfa, beta, teta, delta e gama.

“Algumas dessas ondas são consistentes com o que ocorre quando temos processos de pensamento consciente, quando estamos analisando coisas, revivendo a vida, as recordações e quando temos consciência de ordem superior,” explica Parnia. “Assim conseguimos demonstrar, pela primeira vez, marcadores cerebrais da experiência lúcida da morte. Além, é claro, das próprias experiências.”

Nem todos têm recordações
Na verdade, ninguém espera que as pessoas se lembrem de algo. Mas isso não quer dizer que elas não tenham vivido a experiência.

Devido aos medicamentos sedativos, ao coma profundo e à inflamação do cérebro, que é a primeira ocorrência verificada quando o coração volta a bombear sangue, o normal é que as pessoas se esqueçam de tudo.

“Nunca conseguiremos com que 100% das pessoas se recordem de tudo, o que tem muito a ver com o efeito do cérebro e dos medicamentos administrados,” explica o pesquisador.

“Trinta e nove por cento das pessoas têm recordações vagas, mas não conseguem se lembrar dos detalhes, e 20% têm o que chamamos de uma espécie de experiência transcendente. Já 7% se lembram de ouvir coisas e 3% se lembram de terem visto alguma coisa,” detalha ele.

“Vi toda a minha vida detalhadamente”
Entre o grupo de pessoas que se lembravam do que viveram nesse período em que o coração deixou de bombear sangue, mas seu cérebro continuou registrando marcadores de atividade cerebral elevada, o estudo recolheu diversas experiências, com duração desconhecida. “Poderiam ser apenas alguns segundos, não sei,” reconhece Parnia.

Entre as declarações coletadas no estudo, diversos pacientes se recordaram de terem feito uma avaliação das suas vidas e fizeram afirmações como:

  • “Fiz uma revisão da vida e, durante essa revisão, voltei a ver cenas da minha vida.”
  • “Toda a minha vida passou à minha frente… no princípio, foi muito rápido. Depois, alguns momentos se desaceleraram. Tudo me foi mostrado, todos os que eu ajudei e todos os que magoei.”
  • “Minha vida e todos os seus acontecimentos começaram a se reproduzir na minha mente, mas de uma forma muito clara, real e viva.”

Outros afirmaram terem vivido uma separação do corpo; outros, a sensação de retornar ao corpo:

  • “Deixei o meu corpo.”
  • “Disseram-me que não era a minha hora e que eu precisava retornar ao meu corpo.”
  • “Eu me senti como se me atirassem de volta para o meu corpo.”
  • “Descobri que havia um ser ao meu lado… era uma presença reconfortante, uma presença tranquilizadora, mas também uma presença de magnitude e poder.”

Já outros tiveram a percepção de se dirigir a um destino e regressar a um lugar que eles sentiam que fosse o seu lar:

  • “Olhei para cima e vi o meu destino.”
  • “Não é que eu estivesse em um túnel. Era como se fosse criado um túnel à minha volta devido à incrível velocidade da minha viagem.”
  • “Passei por um túnel com grande velocidade. Era maravilhoso e não queria voltar.”
  • “Sabia que estava em casa.”
  • “Eu queria ir para a luz. Queria voltar para casa.”

Para Parnia, o interessante são os diferentes aspectos da revisão da vida. “Normalmente, nós recordamos 1% de toda a nossa vida quando estamos vivos. Mas, de alguma forma, é notável que, na morte, as pessoas cheguem a se lembrar de tudo, embora o seu cérebro esteja se apagando.”

“Mas, curiosamente, não é como um filme, como aparece erroneamente nos meios de comunicação,” explica ele. “É uma reavaliação muito profunda, intencional e significativa de tudo o que fizeram, disseram e pensaram. Eles se julgam a si próprios, julgam suas ações com base na sua moral e ética, o que é realmente admirável.”

“E tudo isso acontece quando eles estão passando pela morte, o que, novamente, é muito interessante. E é o que torna impossível que se trate de uma alucinação,” acrescenta Parnia. “Eles sabem que estão revivendo tudo de forma espontânea, o que é fabuloso.”

O que as pessoas sentem com essas experiências?
Os pacientes do estudo afirmaram que se sentiram “terrivelmente mal,” por exemplo, quando experimentaram a dor que causaram para outras pessoas. Mas também sentiram a mesma alegria e felicidade que suas ações trouxeram às pessoas próximas.

Neste ponto, Parnia explica que é importante levar em conta que, normalmente, para poder levar a cabo nossa vida diária, não processamos todos os aspectos do nosso cérebro porque seria insuportável.

“O seu cérebro está ativo em certas partes que são importantes e outras costumam ser inibidas com uma espécie de sistema de ruptura que serve de freio,” explica ele.

“O interessante é que, com a morte, o que estamos vendo é que, à medida que as pessoas passam pela morte, o cérebro se apaga, perde velocidade e, quando isso acontece, os sistemas de ruptura são eliminados e o processo de inibição é suspenso,” indica Parnia sobre o processo que eles conseguiram comprovar com os marcadores que medem a atividade elétrica do cérebro. Com ele, foi possível observar atividade em partes do cérebro às quais normalmente não se tem acesso.

“Tudo o que aconteceu nas suas vidas está gravado e as pessoas são capazes de reviver, o que é absolutamente notável,” segundo ele. “Trata-se definitivamente de uma experiência real da morte e agora estamos entendendo porque estamos analisando do ponto de visto científico, mas também de uma perspectiva evolutiva.”

“Por que, quando você morre, todas as coisas que têm importância para você, como pagar as contas, a hipoteca, o jantar, o trabalho, o que seja… Desaparecem completamente?” questiona Parnia.

“Elas já não têm importância. O que fica evidente, o que importa, na verdade, e o que se destaca na sua mente na hora de morrer é a sua conduta como ser humano. Os aspectos morais e éticos das suas ações e isso realmente é fascinante,” conclui o pesquisador.