No dia a dia de uma delegacia especializada em violência doméstica, é relativamente recorrente que homens procurem a Polícia em busca de medidas protetivas. Com o advento da Lei Maria da Penha, o Direito brasileiro passou a se familiarizar com a ideia de “restraining order” que víamos nos filmes americanos. Por determinação judicial, uma pessoa fica impedida tomar certas atitudes como, por exemplo, de se aproximar tantos metros de outra pessoa, de entrar com contato com ela ou com os seus familiares, de buscar se comunicar etc. E, ao contrário do que se possa imaginar, há sim busca dessa proteção por homens.
A condição de vítima em um relacionamento abusivo não é exclusiva das mulheres (embora seja este o cenário mais comum). Homens podem, sim, ser vítimas de relacionamentos abusivos e até mesmo violentos, seja o parceiro outro homem (uma relação homoafetiva) ou mesmo uma mulher. A propósito, há casos em que o homem é vítima dos mais variados tipos de violência praticados por sua companheira, como uma tentativa de homicídio, por exemplo. Aliás, é relevante registrar que o artigo 129, § 9º, do Código Penal, ao tratar da lesão corporal praticada no âmbito da violência doméstica, não exclui a possibilidade de o homem figurar como sujeito passivo, isto é, como vítima. Confira-se:
“Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, , ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)”
Dessa forma, podemos estabelecer que homens podem sim ser vítimas de violência doméstica. Então… é possível que ele faça o pedido de medidas protetivas de urgência?
Com base na Lei Maria da Penha não é possível esse pedido.
A Lei nº 11.340/06 foi criada com o intuito de proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar, independentemente de orientação sexual. A Lei Maria da Penha se destina a proteger mulheres. Apenas elas podem ser amparadas pela norma e não há, nisso, nenhuma inconstitucionalidade. Não há ofensa ao princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, I da CRFB.
Desnecessário dizer que a mulher desde sempre foi colocada em papel de submissão em relação ao homem e, assim sendo, sempre foi objeto de todo tipo de violência. Pior, tal violência sempre foi naturalizada. Surgiu dessa histórica posição de vulnerabilidade da mulher em relação ao homem, no ambiente doméstico, familiar ou afetivo, a necessidade de uma proteção específica.
A Lei nº 11.340/06 emerge, então, como verdadeira ação afirmativa (discriminação positiva), a fim de prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, em consonância com o preceito do artigo 226, § 8º, da Constituição da República. Sua constitucionalidade já foi pacificada por nossas Cortes Superiores na medida em que a especial proteção reflete a busca por igualdade material.
A Lei Maria da Penha não pode, nem por analogia, ser aplicada em favor de homens. Seu sujeito passivo será sempre pessoa do gênero feminino [1]. E decorre daí a afirmação de que as medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha não podem ser aplicadas a homens.
Ainda que em um relacionamento afetivo o homem seja vítima de violência por parte da mulher, esta não será baseada no gênero. Nem mesmo no caso de uma relação homoafetiva entre dois homens haverá a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha, na medida em que tal relação é alheia à perspectiva de vulnerabilidade do gênero feminino.
Ao se aplicar, por analogia a Lei 11340/06 e seus mecanismos de proteção ao homem, estaríamos diante de uma analogia in malam partem, o que é vedado no direito penal pátrio. Isso porque, os mecanismos de proteção conferidos pela lei acabam por restringir direitos da parte agressora, além de vetar a possibilidade de composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, ao afastar a aplicação da Lei 9099/95.
E mais, se fossem deferidas as medidas protetivas de urgência ao homem, em caso de descumprimento da decisão que as deferiu, a mulher estaria sujeita às sanções previstas à prática do crime definido no artigo 24-A da lei, o que afrontaria gravemente princípios basilares do direito penal. Além de estarmos diante de clara analogia in malam partem, ferido estaria o princípio da legalidade.
Assim, força reiterar que não são cabíveis medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha em favor de pessoa do gênero masculino. Homens não são favorecidos pelo microssistema instituído com vistas à proteção das mulheres.
Não obstante, o ordenamento jurídico ampara o homem vítima de violência.
Com o advento da Lei nº 12.403, de 2011, o Código de Processo Penal teve seu artigo 319 alterado, para veicular as medidas cautelares diversas da prisão. Percebeu-se que, devido às dificuldades do sistema de persecução penal em se manter célere na apreciação das causas penais, a prisão cautelar assumiu a função inadequada (e inconstitucional) de antecipação de pena. O sistema, até então bipolar [2], passou a conhecer soluções intermediárias entre a liberdade provisória e a prisão processual. Nesse contexto, surgiu a hipótese de “restraining order” fora do âmbito da Lei Maria da Penha. Confira-se:
“Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
[…]
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;”
O dispositivo é genérico e se aplica a todas as vítimas, seja qual for o seu gênero. A ideia das medidas cautelares diversas da prisão é positivar, no ordenamento jurídico pátrio, as diretrizes estabelecidas nas Regras das Nações Unidas sobre medidas não privativas de liberdade e nas regras de Tóquio, segundo as quais, sempre que possível, o encarceramento, sobretudo o cautelar, deve ser pautado pelo princípio da necessidade. Abriu-se um leque de alternativas ao Estado-juiz que, de acordo com a peculiaridade do caso, escolherá a medida, ou as medidas, que se mostrarem adequadas e suficientes para os fins da cautela [3]. Assim, em sendo hipótese em que cabível a prisão preventiva, mas bastando a aplicação de uma medida cautelar diversa, é possível sim se cogitar de medidas cautelares deferidas em favor de homens vitimados por suas parceiras no ambiente doméstico.
Outro não é o entendimento de cortes superiores, senão vejamos:
“[…] VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. VÍTIMA DO SEXO MASCULINO. INAPLICABILIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI Nº 11.343/06. MEDIDAS CAUTELARES PREVISTAS NO ARTIGO 319 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. POSSIBILIDADE.[…]
3. Embora o homem possa ser vítima de violência doméstica (artigo 129, 9º do Código Penal), as medidas protetivas, previstas na Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha possuem aplicação restrita às mulheres, eis que lhe é garantido tratamento diferenciado ante sua presumida vulnerabilidade e fragilidade frente às agressões do homem, conforme se extrai da leitura dos artigos 1º e 22 da mencionada Lei, o que não impede a proteção das vítimas do sexo masculino a ser efetivada por intermédio da decretação de medidas cautelares prevista no Código de Processo Penal, especialmente aquelas arroladas nos incisos II e III, do artigo 319, do referido diploma normativo.
4. Recurso conhecido como apelação e improvido.
(TJ/DFT, 20140110641569RSE, Relator: Cesar Loyola, 2ª Turma Criminal, j.07/8/2014, DJE: 15/8/2014)”
As cautelares diversas da prisão, portanto, podem ser usadas como mecanismos de proteção do homem, tendo efeitos análogos àqueles promovidos pelas medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Mas aqui se torna relevantíssimo estabelecer uma ressalva.
A despeito de alguns entendimentos em contrário, é amplamente admitido o pedido de medida protetiva de urgência desvinculado de uma ação penal, uma vez que segundo entendimento majoritário, trata-se de medida cautelar autônoma. É extremamente comum que a mulher compareça à Delegacia de Polícia afirmando que não quer a persecução penal, mas que deseja solicitar medida protetiva de urgência. Assim, não se colhe a representação, mas encaminha-se o pedido de medida protetiva ao Poder Judiciário.
Isso não é possível em se tratando de medida cautelar diversa da prisão, na medida em que as hipóteses do artigo 319 do CPP substituem a prisão. Em não havendo persecução penal, não se há que cogitar de prisão cautelar e, consequentemente, não teria cabimento conceder medida cautelar diversa.
Indubitavelmente, é um regime protetivo bastante restrito em relação àquele deferido às mulheres vítimas de violência doméstica, nada impedindo que o legislador preveja mecanismos que ampliem a proteção aos homens vitimados por suas parceiras.
Por fim, vale ressaltar que a Lei nº 13.431/2017 (lei do depoimento especial) prevê também uma hipótese de medidas protetivas que podem ser deferidas a crianças e adolescentes do gênero masculino quando vítimas ou testemunhas de violência, medida que será pleiteada por meio de seu representante legal, contra o autor da violência (artigo 6º), tema que merece ser tratado em artigo a parte.
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[1] Para melhor compreensão do termo gênero, remetemos o leitor a nosso artigo intitulado “Mulheres transgênero, Lei maria da penha e autoridade policial”, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-03/lima-burin-mulheres-transgenero-maria-penha-policia.
[2] A expressão é de Rogério Schietti Cruz, cunhada na obra Prisão Cautelar. Dramas, Princípios e Alternativas. 3ª edição. Ed JusPodium.
[3] Nesse sentido, Rogério Schietti Cruz, Prisão Cautelar. Dramas, Princípios e Alternativas. 3ª edição. Ed JusPodium. Págs. 167/168.