Após suposto óbito, Raimundo já se casou e até abriu um canal no YouTube
Era um dia normal para Raimundo. Ele acordou, banhou-se, tomou café da manhã, entrou no carro, foi até a farmácia buscar seu remédio para hipertensão. Lá, descobriu que não fazia sentido ele se medicar, afinal, já estava ‘morto’.
Ao olhar o registro, a atendente percebeu pelo CPF do lavrador Raimundo Costa, de 59 anos, que ele estava morto. Não só durante todas essas atividades que ele fez antes de buscar um remédio, mas desde agosto de 2011.
A descoberta do próprio óbito veio em 2017. Desde então, o morador de Pedrão, no centro-norte baiano, luta para ressuscitar aos olhos da lei.
Após ser dado como ‘morto’, ele já se casou, tirou documento de identidade, votou em cinco eleições e até abriu um canal no YouTube para recitar os cordéis que escreve.
No entanto, Raimundo não conseguiu ter acesso ao seguro-plantação e nem às sementes distribuídas gratuitamente pelo governo do estado. O lavrador também não pode usar o Sistema Único de Saúde (SUS), mas conseguiu vacinar-se contra a covid-19 após a secretária de Saúde de Pedrão intervir, pois ela já conhecia o caso dele.
“Meu cartão de crédito também está inativo. Eu só consigo pegar os remédios da hipertensão gratuitamente quando o médico é ‘gente boa’, pois, legalmente, estou impedido de usar o SUS”, conta ele.
Troca-troca
A data do suposto óbito de Raimundo é o mesmo dia em que morreu a mãe do agricultor. Por conta disso, tanto o INSS quanto o Sistema de Controle de Óbitos (Sisobi) argumentaram que o CPF dele foi incluído na certidão de óbito da mãe, provocando a confusão.
No entanto, ao saber desta possibilidade, o lavrador pediu a reimpressão da certidão de óbito da mãe. Ao analisar o documento, percebeu que nenhum CPF constava lá.
“O que eu podia fazer, eu já fiz. Agora estou nas mãos da Justiça. Não posso fazer mais nada, só esperar. Mas até quando, eu não sei”, lamenta.
Vida após a ‘morte’
A vida após a ‘morte’ de Raimundo tem sido marcada, além dos problemas legais, por piadas. O caso dele ficou famoso em toda Pedrão, onde ficou conhecido como “defunto”.
Eu vou na feira sempre e ninguém me chama mais de Raimundo: é ‘morto-vivo’, ‘defunto’, ‘já morreu’, conta ele, que leva na esportiva. Eu não vou brigar com ninguém. Até porque se eu ficar estressado, as piadas vão aumentar, pondera ele, que vai fazer 10 anos de morto em 2021.
Leva e traz jurídico
A disputa jurídica em busca da ‘ressuscitação’ é tão confusa quanto a própria morte em si, explica o advogado Bruno Coni, que defende Raimundo no caso.
A ação foi iniciada ainda em 2017, inicialmente contra o INSS. No entanto, não há um entendimento se o processo deveria ser contra a União ou contra o governo da Bahia, que possui responsabilidade legal sobre os cartórios.
Durante o processo, perceberam que o CPF de Raimundo segue ativo. Por conta disso, a Justiça Federal arquivou a causa, obrigando o advogado a dar entrada em um novo processo, desta vez na Justiça Estadual.
“Só que o juiz entendeu que era uma questão de registro civil, transferindo o processo para a vara de registros públicos. Não concordamos com esta visão, pois a certidão de nascimento dele não foi alterada, por exemplo. O casamento dele foi registrado também. Não há discussão sobre isso”, argumenta o advogado.
Agora, as partes estão à espera do Ministério Público da Bahia (MP), que dará um parecer sobre quem deve julgar a causa. Enquanto isso, Raimundo segue uma vida normal, apesar de estar morto aos olhos da lei.