O que acontece com seu corpo quando você come demais?

Por: Redação / BBC Saúde  Data: 25/12/2019 às 19:45

Fazer refeições fartas pode nos deixar com mais fome — mas não é porque seu estômago ‘aumenta’

Já sei como me sinto depois de cada ceia de Natal: sonolento, lerdo e, sem dúvida, empanturrado. Mas na hora do almoço, no dia seguinte, tenho certeza de que arrumarei um “espaço” para o enterro dos ossos. Se você parar para pensar, é bem estranho que no dia seguinte a uma refeição farta a gente seja capaz de comer novamente a mesma quantidade de comida. Será que não aprendemos a lição da primeira vez?

Por que ainda sentimos fome depois de verdadeiros banquetes, como na ceia de Natal? Será que comer demais “aumenta” o estômago, o que significa que você tem mais espaço para comer no dia seguinte? Só de pensar nisso estou ficando com fome.

A resposta é que, para a maioria das pessoas, você não sente fome, apesar da enorme quantidade de comida que consumiu recentemente. Você sente fome justamente por isso.

Contrações, roncos e dilatações
Aquela pontada que te dá vontade de comer é resultado de uma série de mudanças fisiológicas dentro do organismo.

É verdade que seu estômago muda de tamanho quando está cheio ou com fome. Ele se contrai à medida que a refeição é digerida para ajudar a encaminhar os alimentos em direção ao intestino. E ronca conforme o ar e a comida se movimentam, e os alimentos são empurrados para baixo, em um fenômeno chamado borborigmo, que geralmente é o primeiro sinal de que podemos estar com fome, uma vez que é sonoro e físico.

Depois de roncar, o estômago se expande novamente, se preparando para a comida — e isso é desencadeado pelos hormônios.

Mas não é bem verdade que comer “aumente” o estômago. Como o estômago é muito elástico, ele volta à sua capacidade de repouso (cerca de 1-2 litros) após uma refeição farta. Na verdade, o estômago da maioria das pessoas tem capacidade semelhante — nem altura, nem peso influenciam.

O que talvez não tenhamos consciência é da liberação dos hormônios da fome: o NPY e AgRP do hipotálamo e a grelina do estômago. A grelina é liberada quando o estômago está vazio e estimula a produção de NPY e AgRP no cérebro. Esses dois hormônios são responsáveis ​​por criar a sensação de fome, anulando os hormônios que nos dão a sensação de saciedade.

Talvez contraintuitivamente, os níveis de grelina tendem a ser mais altos em indivíduos magros, e mais baixos em pessoas obesas. Você poderia supor que um hormônio que estimula a fome estaria mais presente em pessoas que comem mais — mas essa contradição provavelmente reflete o quão complicado é o nosso sistema endócrino.

Embora apenas três hormônios sejam em grande parte responsáveis ​​por gerar a sensação de fome, são necessários cerca de uma dúzia para nos fazer sentir saciados.

Alguns deles, GIP e GLP-1, são responsáveis ​​por estimular a produção de insulina para regular o metabolismo dos carboidratos. Vários outros hormônios estão envolvidos na desaceleração da movimentação dos alimentos dentro do estômago, para dar tempo ao corpo de fazer a digestão.

Para pessoas obesas que têm baixos níveis de grelina, pode ser que altos níveis de insulina, necessários para metabolizar uma dieta rica em carboidratos, estejam inibindo a produção de grelina.

Dois são essenciais para reduzir a sensação de fome: CKK e PYY. Em pacientes com banda gástrica ajustável, que reduz o tamanho do estômago, o PYY é particularmente alto. E contribui para a perda de apetite.

Embora o estômago tenha um sistema hormonal para informar ao cérebro quando está vazio, isso geralmente é aumentado pela associação que fazemos entre a fome e os períodos do dia. Portanto, mesmo que você tenha almoçado muito bem, ainda pode sentir fome no jantar.

“Se você sempre come um pedaço de chocolate ou petisco depois do jantar, quando senta no sofá para assistir à televisão, seu corpo pode começar a associar o hábito de sentar no sofá com ver televisão e comer algo agradável, e, como resultado, quando você vai para o sofá, sente desejo”, diz Karolien van den Akker, pesquisadora do grupo Centerdata.

“Isso pode acontecer até quando você está saciado; quando suas reservas de energia estão cheias.”

Comer demais não é ruim, explica Van den Akker. Diferentemente do diagnóstico clínico de compulsão alimentar, em que quantidades muito grandes de comida são consumidas em um curto espaço de tempo, sendo geralmente associada a sentimentos de repulsa, culpa ou vergonha, comer demais pode ser visto simplesmente como um hábito que as pessoas não gostariam de ter.

Mas o desejo de comida adquirido também pode tornar muito difícil manter uma dieta bem-sucedida.

Quando aprendemos a associar as propriedades gratificantes dos alimentos, principalmente daqueles com alto teor de açúcar, a horários, cheiros, ambientes e comportamentos específicos, a memória dessa sensação é ativada e você começa ter desejo. Isso desencadeia não apenas respostas psicológicas, mas fisiológicas, como salivação.

Você pode ter ouvido falar no cão de Pavlov — experimento em que um sino é tocado na hora das refeições, para que o cachorro associe o som do sino à comida. Por fim, o animal acaba salivando só de ouvir o sino.

Os seres humanos não são muito mais sofisticados que os cães nesse sentido. Em outro experimento, os pesquisadores mostraram formas simples — círculos e quadrados — aos participantes. Quando a figura era um quadrado, eles recebiam um pedaço de chocolate e, a partir de então, começaram a ter vontade de comer chocolate sempre que viam um quadrado. Assim como os cães, os seres humanos podem ser condicionados a esperar alimentos com base em sugestões simples.

“Essas associações se desenvolvem rapidamente e mesmo com pequenas quantidades de chocolate, como de 1g a 2g”, diz Van den Akker.

“Parece bem fácil adquirir esses desejos, mas é difícil se livrar deles. Seu corpo se lembra daquele momento específico em que você comeu chocolate. O desejo pode facilmente se transformar em um desejo diário — mesmo após apenas quatro dias de repetição.”

Às vezes, até nosso humor pode se tornar um gatilho para o condicionamento. As pessoas geralmente relatam ter menos autocontrole se estiverem de mau humor ou cansadas.

“Nesse caso, as emoções podem se associar diretamente à comida saborosa, de modo que a emoção negativa pode desencadear o desejo”, acrescenta Van den Akker.

Em princípio, qualquer humor, mesmo positivo, pode se tornar um gatilho de desejo, desde que seja consistentemente seguido por comida. E tem sido mostrado reiteradamente que comemos mais quando estamos na companhia de amigos.

Mesmo quando você controla o consumo de álcool, em ocasiões especiais, seja pelo tempo que passamos à mesa e uma série de outros fatores, comemos mais quando estamos sendo sociais. Talvez porque o prazer das companhias ao nosso redor dificulte a concentração no controle de porções. Até pessoas sentadas em um laboratório com uma tigela de macarrão vão comer mais se tiverem um amigo para conversar.

Esse conhecimento também tem implicações na quebra de maus hábitos alimentares.

“Quando estamos tentando ajudar as pessoas a comer menos, focamos em “desaprender” os desejos de comida adquiridos. Aqui, também tentamos garantir que elas aprendam que comer algo bom uma vez não significa que se deve fazer o mesmo nos próximos dias também “, diz Van den Akker.

Isso é importante porque outros estudos mostram que quebrar um bom hábito alimentar uma única vez pode ser suficiente para ter uma recaída no mau hábito.

Talvez não seja surpresa, portanto, que sintamos fome depois de uma refeição farta com a família e os amigos. Sentimos fome no dia seguinte — ou até no mesmo dia mais tarde — não porque nosso estômago “aumentou”, mas porque nos acostumamos a comer excessivamente em ocasiões especiais.

Se nossos cérebros se deparam com todos os sinais – cheiros, sons, ambiente – associados a uma refeição farta no dia seguinte a um banquete, como no Natal, ele começa a nos preparar para a segunda rodada.