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Município da Serra Gaúcha não tem assassinatos há mais de 30 anos

Marcelo Casagrande/Agencia RBS

Um dia de ocorrências registradas em Caxias do Sul corresponde a três anos de delitos cometidos no município agrícola

Numa realidade em que chacinas do tráfico, latrocínios, feminicídios, brigas fatais em botecos e a degradação das cracolândias soam como banalidades, a violência está ausente na memória coletiva de Montauri, cidade com 1.453 habitantes na Serra Gaúcha.

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Se o governo gaúcho comemora a redução de homicídios no Estado, que teve 1.793 vítimas em 2019 na comparação com as 2.362 vidas perdidas em 2018, os montaurienses precisam forçar a memória para apontar quando foi a última vez em que alguém morreu por meio de tiros, pauladas ou facadas. A cidade nunca registrou um assassinato em quase 32 anos de emancipação política e ninguém sabe ao certo quando uma morte violenta aconteceu pela última vez. Quem vive na pequena cidade entre Serafina Corrêa e Casca, desfruta de um luxo feito de paz e respeito à vida.

Portanto, esqueça a rotina que aflige moradores de cidades como Caxias do Sul, Bento Gonçalves ou Porto Alegre ou até mesmo de comunidades menores na Serra. Em Montauri, não será possível encontrar mães e pais que choraram a perda de seus filhos para a violência, alguém que tenha um familiar recolhido em presídio ou estatísticas preocupantes de insegurança. O patamar de Montauri também está acima das demais comunidades serranas. No ano passado, de 66 municípios da área de abrangência do Comando Regional de Polícia Ostensiva (CRPO), 40 não tiveram mortes violentas. Na lista, porém, há cidades que já registraram crimes contra a vida em anos anteriores. Montauri segue ilesa.

— Aqui é perto do paraíso — brinca o vice-prefeito Cacildo Fernando Possa, 51 anos.

Há diversas teorias populares sobre a origem dessa paz. A mais divertida é de que não haveria desocupados arquitetando bobagens, o que não deixa de ter um fundo de verdade. A reportagem percorreu a cidade na semana passada e teve dificuldade para encontrar alma viva pelas cerca de 30 ruas, com exceção de alguns aposentados que buscavam o refresco na sombra de casa ou jogavam cartas nos poucos bares abertos. Parecia até feriado. Entretanto, deu para perceber uma discreta vigilância atrás das janelas das residências e do comércio, indicativo que nenhum forasteiro passa despercebido.

— Se algum desconhecido entra na cidade, todo mundo se avisa, a polícia fica sabendo. O pessoal só não alertou sobre vocês (da reportagem) porque provavelmente viram que estavam aqui na prefeitura — diz Possa.

Essa vigilância é comportamento recente e faz parte de um pacto para impedir que Montauri enfrente os mesmos problemas dos grandes centros urbanos. Contudo, não explica a inexistência de homicídios e feminicídios. Há cidades igualmente seguras e com poucos crimes na Serra, mas que registraram pelo menos uma morte violenta nos últimos 10 ou 15 anos, caso de André da Rocha, com 1,3 mil habitantes. Montauri não. A tabeliã substituta dos Serviços Notariais e Registrais de Montauri, Cheisa Begnini, pesquisou nos livros de óbitos e não conseguiu identificar nenhum assassinato desde 1974.

— Antigamente havia registros onde só se colocava motivo ignorado no óbito. Mas estou há 12 anos no cartório e nunca registrei homicídio — revela a tabeliã.

O vice-prefeito lembra de um caso rumoroso no início dos anos 1980, possivelmente em 1981, quando uma briga de bar resultou na morte de um morador. Teria sido um dos poucos e também o último homicídio na cidade.

É fácil compreender, portanto, porque a mensagem de boas-vindas no pórtico de acesso ao município não é mera cortesia.

Na tentativa de entender como um município consegue se manter isolado das ondas de intolerância, a reportagem foi aconselhada a buscar fontes no tradicional bar do Mior, na Rua Daltro Filho. O proprietário, Laurindo Mior, 79, mantém o comércio há 48 anos, onde melancias disputam espaço com mesas de carteado.

A maioria dos frequentadores tem mais de 60 anos e nasceu em Montauri, portanto, viu a transformação do distrito em município e coleciona histórias passadas de pai para filho. Em 1904 chegaram os primeiros imigrantes italianos. Em 1936, a localidade já era distrito de Guaporé. A autonomia só foi conquistada em maio de 1988, quando ocorreu a emancipação. O bom é que não há casos de violência explícita para contar. No máximo, algum entrevero embalado por uma bebida a mais no copo.

— Ah, parece que uma vez num baile lá por 1976 teve uma morte, mas foi na divisa com Vila Maria (norte do Estado). Uma vez dava muita briguinha em bar, essas coisas, mas o pessoal foi evoluindo — atesta Mior.

Antoninho Rossetta, 66, tem outra teoria.

— Aqui todo mundo se conhece da infância e se respeita. E tem mais: tu vai ficar numa bodega até tarde para fazer o quê? O sol desce, vou para casa — diz Rossetta.

A violência só chega a Montauri por meio do noticiário. Locutora da Rádio Montauriense FM, Sandra Rossetto lê no intervalo da programação musical os casos mais rumorosos que identifica na internet. Em relação à própria cidade, as notícias envolvem mais os serviços oferecidos pela prefeitura ou algum evento comunitário.

São os ecos de outras regiões que espantam. Na semana passada, Maria Sgarbossa Roso, 56, acompanhou as informações de dois ladrões que haviam sido mortos durante um assalto a uma propriedade rural no interior de Passo Fundo. Sentiu medo porque era a tradução de como a insegurança rouba a tranquilidade das famílias e alívio por saber que nunca houve um fato semelhante em Montauri. Por isso, quando abre a porta de casa para ir ao trabalho, sente-se motivada. Maria escolheu a cidade como lar há cerca de 35 anos e não troca a rotina por outra. Para ela, a violência que um dia pode ter ocorrido de forma extraordinária em sua comunidade surge apenas como um borrão na memória.

— Teve um caso de alguém que quebrou a garrafa na cara de outra pessoa num bar, mas esse bar já fechou há uns 10 anos. Tenho amigos de Canoas que vêm aqui para passear porque se sentem livres. Aqui, todos se conhecem — conta a mulher, apontando diversas casas ao longe para mostrar que sabe quem são os moradores.

Droga é temor constante
Qualquer ocorrência é motivo de grandes comentários em Montauri. Ninguém esquece da vez em quem um rapaz foi pego meses atrás com um cigarro de maconha. A apreensão na rua chamou a atenção para a presença da droga, sinal de que os novos tempos exigem preparo da comunidade. A primeira ocorrência oficial foi por posse de um cigarro de maconha em 2017, segundo o soldado Fábio Lopes, comandante interino da BM em Montauri. 

— Em 2018, teve apreensão de tráfico, mas de um pessoal que estava cruzando a cidade. Em 2019, teve uma apreensão de uma bucha de cocaína durante uma revista num baile e foi só _ relata o policial.

O vice-prefeito Cacildo Fernando Possa admite o desafio.

— A droga está entrando, nos preocupa.

Luiz Lampugnani, 63, agricultor e que teve passagem como sindicalista rural, acredita que a preservação da segurança dependerá da atuação da polícia. 

— Todo mundo tenta educar os filhos porque a droga provoca acidentes, brigas, mortes. Uma saída para evitar que a cidade fique violenta no futuro é ter mais efetivo da BM — acredita Lampugnani.

A segurança citada pelo agricultor foi reforçada em 2018. Até então, um único PM era responsável por Montauri. Hoje, o contingente é maior e suficiente para fazer abordagens a suspeitos e atender a população na troca de informações sobre movimentações estranhas de veículos ou pessoas desconhecidas. De 2017 a 2019, a polícia registrou um total de 28 ocorrências em Montauri, metade por furtos e o resto relacionado à posse de entorpecentes e apreensão de armas — média 0,7 casos por mês.

São números extraordinários quando comparados a Caxias do Sul, que tem todos os dias uma média de 27 ocorrências de crimes com perfis absurdamente piores. Ou seja, num único dia, Caxias tem o total de casos que aconteceram em três anos na pequena Montauri. O período mais conturbado na cidade ocorreu entre 2016 e 2017, quando uma quadrilha agia na região para cometer roubos e abigeato. O grupo criminoso foi desmantelado e os assaltos cessaram.

A comunidade evita comemorar e prefere a vigilância.

— Posso afirmar que a cidade é ordeira. É menos de uma ocorrência por mês — frisa Lopes.

Sem casos complexos
O aspecto socioeconômico de Montauri também parece contar a favor. Luiz Lampugnani apela ao bom humor.

— Aqui não existe pobre. Não vejo gente passando fome. E aqui é tudo italiano e italiano é ganancioso, quer trabalhar para ganhar dinheiro, comprar as coisas.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o Produto Interno Bruto per capita na cidade é de R$ 34.736,20, ou R$ 10 mil a menos do que a industrializada Caxias do Sul. O perfil de Montauri é agrícola, com força no plantio de milho e soja e na produção de leite. Duas empresas do ramo plástico e outra do ramo metalúrgico na zona urbana empregam em torno de 150 trabalhadores. Uma parcela depende do comércio e o restante da agropecuária. Em tese, não há espaço para a ociosidade.

— Duas indústrias têm cuidado especial para o funcionário. Antes de trazer para cá, verificam se há vaga na creche, onde vão morar, se tem casa para alugar, essas coisas — revela o vice-prefeito Possa.

O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é outro termômetro. Sem demanda para atendimentos de alta complexidade, o serviço acaba ofertando oficinas de artesanato, dança, informática básica e canto. Atualmente, apenas quatro famílias recebem o Bolsa Família, conforme o coordenador da unidade, Paulo Collet, 35.

O Conselho Tutelar também não precisa se dedicar a casos de famílias extremamente problemáticas. Não há histórias de abandono ou negligência envolvendo crianças e os relatos mais contundentes envolvem brigas com agressões verbais. A conselheira tutelar Flávia Portella Amarante relaciona boa convivência à educação repassada pelos pais.

— Na verdade, temos apenas questões básicas e são 3 ou 4 atendimentos por mês para quatro famílias que vieram de fora para tentar algum trabalho na cidade e já tinham um histórico por trás. A cidade tem os pais que preservam o costume dos antepassados, repassam para os filhos. A escola vai atrás dos estudantes que faltam. Isso ajuda muito — resume Flávia.

Aos 17 anos, Adriano Boff já tem uma visão clara sobre os motivos da vida pacífica em Montauri. Como presidente do grêmio estudantil do Colégio Estadual Alexandre de Gusmão, o adolescente vê na educação recebida em casa um diferencial da cidade e cita a infraestrutura viária, ou a falta dela, como segundo fator.

— Creio que a ausência da violência em nossa cidade se dá primeiramente pela forma que somos criados. Desde muito cedo aprendemos a ter sempre respeito com o próximo, até por ser uma cidade com apenas 1,5 mil habitantes, todos se conhecem. Então, ou são amigos ou familiar. E também, a educação que recebemos na escola, é de alta qualidade, todos aqui tem o seu professor como um amigo, tanto que nunca houve registro de violência com professores. Outro ponto: como nossa cidade ainda não tem o acesso asfáltico, não desperta muito interesse das pessoas de fora em vir morar para cá — pondera Adriano.

Sônia Toffoli, 59, que atuou como assistente social na prefeitura, conta que as campanhas de agasalho realizadas na cidade servem mais para atender famílias pobres que residem em outros municípios do que os montaurienses.

— Acho triste num grande centro que acham a violência como rotineira e não te diz nada. O certo é se chocar com cada morte. Aqui, ainda bem, não tem violência urbana, não se vê alguém indo todo quebrado para o hospital. Ah, e não desaparece ninguém, nem chinelo de dedo desaparece — ressalta Sônia, numa referência às vidas roubadas em outras cidades.

Com menos direitos básicos afetados, a tendência é manter Montauri sob controle. Por outro lado, embora o desemprego e o acesso à educação não sejam empecilhos, a tarefa para os próximos anos é atender aos anseios da juventude. Não há opções de lazer para os jovens e os ramos de trabalho são restritos.

— Não dá para segurar os filhos, não tem lugar para todos trabalhar aqui. Faltam opções para a juventude se divertir. Só tem a praça, se reúnem ali, é pouco — alerta o agricultor José João Marafon, 55.

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