Com a conquista em saber que foi a primeira estudante cega do Piauí a passar no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no estado, Camila Hannah Marques, deixa uma mensagem enriquecedora: que ninguém está só. “De todas as minhas dificuldades o que eu percebi é que nunca estive sozinha, sempre tive apoio da minha família, professores, sempre teve alguém para me ajudar”.
Em entrevista ao Cidadeverde.com, a voz doce da jovem teresinense de 24 anos demonstra também um aprendizado inestimável. “E o que aprendi é que não adianta, por mais que a gente se desenvolva, a gente sempre tem o que ensinar, mas também o que aprender”.
A estudante de Direito, que ainda nem se formou e já passou na OAB – a colação de grau será em março – conta que foi surpreendida com a notícia. A Associação de Cegos do Piauí confirmou a informação, cujo resultado do Exame foi divulgado na última terça-feira (12). “Me senti no mínimo surpresa e lisonjeada, grata a Deus, aos meus professores e a todo mundo que contribuiu pra essa conquista. Na verdade, eu fiz a primeira etapa e fui para a repescagem na segunda. Então passei pela primeira vez na primeira etapa e pela segunda na outra etapa”.
Articulada com as palavras, a piauiense de 24 anos conta que ficou cega logo depois que nasceu prematura de seis meses. O sucesso ao longo da história escolar demonstra que ela sempre foi uma aluna dedicada e que a ajuda dos pais foi fundamental nesse processo. Assim como todo o aprendizado conquistado na Associação dos Cegos do Piauí, onde teve a complementação obtida durante toda a vida em escolas regulares e privadas. Tanto foi a dedicação quanto aos estudos, que ela também foi aprovada no teste de estágio do Tribunal de Contas do Estado, onde já estagia há 2 anos e cinco meses.
Aprendendo sem manual
A cegueira, de acordo com o relato de Camila, foi consequência da prematuridade, em uma época de Medicina menos avançada e onde pouco se escutava sobre educação inclusiva e direitos das pessoas com deficiência. A jovem costuma dizer que sua mãe teve que aprender “sem manual” a como criar uma filha cega. O resultado não foi outro, a não ser o sucesso, junto com o empenho das duas alunas dedicadas, mãe e filha.
“Eu nasci em uma época em que ser prematura de seis meses não era tão fácil. Nasci com baixo peso, 1,510 Kg. Em 1994 isso era considerado baixo, e por conta disso tive a retinopatia de prematuridade, que basicamente é a má formação dos vasos da retina, e a partir daí eu já fiquei cega. Eu passei 28 dias na incubadora e quando minha mãe começou a perceber meu olho avermelhado eu já tinha quatro meses, então, fazendo os exames ela soube que eu tinha problema na retina”, relata.
Camila lembrou que quando entrou para a escola, foi no período normal, com três anos de idade, quando não se falava muito em inclusão e acessibilidade. “Com o sentido que essas palavras têm hoje. Então é como eu digo, a minha mãe teve que aprender sem manual a cuidar de um filho cego. Eu passei a partir dos 4 anos a estudar na Associação do Cegos, fui acompanhada lá desde a pré-escola. Na segunda série, quando eu estava apta, fui para a escola regular, uma escola simples, mas particular, que minha mãe podia pagar, onde eu tinha contato com outros alunos normalmente.
Então é como eu digo, a minha mãe teve que aprender sem manual a cuidar de um filho cego
No ensino médio, Camila falou que continuou em escola particular, assim como na faculdade. “Tive o acompanhamento da família, nunca pude estudar nas melhores escolas, mas tive um bom apoio da Jane e Ivaldo que foram meus professores na ACEPI”, acrescentou sobre as conquistas.
Modesta, ela demonstrou não gostar muito de falar de como era como aluna. Para ela, a facilidade em aprender ajudou bastante no seu percurso de “disciplina” para alcançar os objetivos que já tinha desde adolescente.
“Meus professores sempre me elogiaram. Eu tirava boas notas, eu tenho uma facilidade de aprender, aprendo um pouco rápido. Isso me ajuda um pouco. No ensino médio fiquei entre os melhores alunos, na faculdade meu índice de aproveitamento era acima de 9. Então eu era uma aluna boa, que tinha um foco e tenho objetivos, então eu me educava para eles”.
Então eu era uma aluna boa, que tinha um foco e tenho objetivos, então eu me educava para eles.
Como exemplo da sua determinação, Camila relata que de forma precoce, ainda na adolescência, descobriu que queria Direito porque se encantou. A proximidade com a tia que cursava a mesma graduação auxiliou bastante, foi quem trouxe a aproximação com o Direito e sempre foi uma inspiração e um apoio.
“Eu comecei a ir atrás das matérias que eu ia precisar me esforçar mais para aprender, enfim, já fui atrás aos poucos do que eu precisava. Primeiro fui me informar sobre as matérias que eu iria precisar me aprofundar na escola, que eram as de linguagem, humanas, geografia, história, para me preparar para fazer o vestibular e passar. Vendo a minha tia, ouvindo as aulas que ela assistia no computador, eu pensei; É o Direito que eu quero. Me apaixonei, simplesmente, desde adolescente”.
Dificuldade todo mundo tem
A garota lembra que passou por algumas dificuldades quanto a sua deficiência nas escolas regulares em que sempre estudou. Na faculdade em que se graduou, ela considera que o maior empecilho era a falta de livros em formatos acessíveis.“Todo mundo tem (dificuldade). Depende. Na escola eu tinha algumas dificuldades por causa da falta de inclusão e de acessibilidade em si. Os obstáculos na faculdade já foram outros. Assim que iniciei, eu tinha dificuldades com a falta de livros. Eu senti muito isso, era uma dificuldade muito grande que eu enfrentava. Assim, nos últimos dias com a LBI (Lei Brasileira de Inclusão), tem-se falado mais em livros com formatos acessíveis, e eu agradeço muito porque vai me ajudar no futuro”, observa.
Para realização da prova da OAB em si, Camila contou que para ela, também existiu a dificuldade por conta da forma de prova que lhe foi disponibilizada. “Eu fiz a prova com ajuda de ledor, então tive que me familiarizar com os livros que iria usar para procurar as questões, tive que me familiarizar mais ou menos onde no livro estavam as respostas que eu poderia usar. Foi um processo um pouco complexo, mas tive muito esse apoio da minha tia, que me ajudou bastante porque ela já conhecia os livros, conhecia a área e tive o apoio da banca daqui do Piauí, que disponibilizou para mim uma ledora muito boa e paciente, que realmente estava focada em me ajudar, uma profissional e tanto”.
Preconceito: “A gente tem que brigar feio para resolver”
O preconceito, conforme Camila, nem sempre é pejorativo no sentido de magoar. No entanto, não tendo com fugir de alguns pré-julgamentos durante a vida, ela parece lidar como a questão com muita serenidade. “Com certeza nem todo mundo sabe lidar com as minhas limitações. E nem todo mundo sabe do que sou capaz. Afinal de contas, a pessoa que tem que acreditar em mim primeiramente sou eu. Já passei por situações de pessoas me subestimarem e em algumas eu encarei numa boa e tive a oportunidade de dizer para pessoa que não é bem assim. Outras o tempo vai se encarregando de mostrar e outras ainda a gente realmente tem que brigar feio pra resolver”.
De degrau em degrau
A consciência de que a aprovação na OAB é apenas um “degrau” para aos seus objetivos mostram a lucidez de que ainda há muito a seguir. Ainda mais quando o sonho é alto como a magistratura. E Camila tem certeza de que vai continuar fazendo por onde chegue lá.
Uma reflexão a deixa mais próxima da realização: “Essa conquista serviu principalmente para mostrar pra mim mesma que a realização do meu sonho depende muito de mim. Se eu der o meu melhor, me esforçar, o resultado vem. Esse é apenas um degrau para os meus objetivos futuros. Não quero parar por aqui. Essa é apenas uma vitória que vai me fazer alçar voos maiores”
“O meu sonho é a magistratura. Pretendo estudar para concursos e se surgirem oportunidades boas no campo da advocacia, eu pretendo abraçar porque a gente precisa de prática jurídica. Pretendo continuar estudando, prestar concursos porque o sonho realmente é a magistratura. Se esse for o plano de Deus, já deu certo”, concluiu.