Compartilho com vocês um texto que escrevi com João Mendonça, estudante de Relações Públicas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
O surgimento da democracia está associado ao esforço de dar a chance de que cada sociedade eleja seus próprios governantes. No Brasil de hoje, o que muitos não entendem é como o jogo democrático deve funcionar diante do pressuposto de que esse regime de governo (a democracia) precisa, necessariamente, ofertar, aos mais diversos grupos, a chance de manter o debate acerca dos interesses de diferentes classes e instituições.
Acredita-se que o debate vem a ser a principal característica da democracia. Não é que ela seja o governo da maioria, tão somente. É o governo de todos, no qual todos(as) debatem ou devem ter, ao menos, a oportunidade de debater. É previsível que um governo mais à direita tome prioridades voltadas ao crescimento econômico e às liberdades individuais, enquanto um governo mais à esquerda estabeleça a ampliação de políticas públicas voltadas à concretização de direitos sociais como um dos seus maiores objetivos. No entanto, o diálogo contínuo entre ideias não idênticas marca a maneira de ser de uma sociedade dita democrática. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consta o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” [1], deixando-se inferir que, embora a maioria possa eleger seus governantes, os mandatários estarão vinculados à promoção do bem de todos, e não somente dos seus correligionários/eleitores.
Nesse sentido, é acertada a percepção de que estamos vivenciando uma crise que, antes de ser política, vem a ser de comunicação, de interação. A política, em si, age para a sua própria existência, de modo que esta não se encontra ameaçada, sob nenhum aspecto. A comunicação, ou melhor, a ausência de comunicação, vem a estar no cerne do separatismo institucional de partidos, parlamentares e lideranças em geral. É a falta de comunicação, afinal, que está na raiz de todas as tonalidades do autoritarismo. Um gravíssimo problema.
Com populações minoritárias ganhando lugar de fala em diversos âmbitos, pode-se imaginar que se materializa um incômodo de quem estava habituado a não se incomodar com pautas de grupos marginalizados. Em geral, os “incomodados” referem-se a pessoas que não adotam o diálogo com os diferentes como uma boa experiência. Por isso, diante um cenário em que as lutas sociais ocupam noticiários, sessões de julgamento e visibilidade acadêmica, é crescente um culto um tanto quanto saudosista compromissado com a manutenção das relações de poder.
A famosa frase “na minha época não era assim” é muito utilizada por quem utiliza-se do seu passado como limite à liberdade de terceiros. Ora, utilizar o método indutivo para justificar o conservadorismo autoritário é como nadar em uma piscina no próprio quintal e dizer que toda água do mundo é doce, como a de sua piscina. Também não esqueçamos dos indivíduos que insistem em afirmar que o regime militar foi uma boa era, com um Brasil em desenvolvimento econômico, não enxergando os dados alarmantes de violência e de profunda desigualdade social. Destaque-se: são dados, não mera opinião. A ciência, a estatística, os fatos, afinal, importam.
E quem já não se deparou com as teses da chamada direita olavista?! Trata-se de um segmento que confronta diretamente com a extrema esquerda. O mundo, como uma impressora monocromática, parece ser vislumbrado em preto e branco, de modo que não é possível fugir da dualidade direita VS esquerda; coxinha ou petista. Há quem insista em dizer que não optar entre essas duas visões de mundo é o mesmo que ser “isentão”, uma espécie de indivíduo que prefere não adotar qualquer posição por razões de conveniência. Vê-se nisso uma degeneração do ideal de pluralismo político, haja vista que a sociedade é, diuturnamente, pressionada a escolher entre duas únicas maneiras de pensar.
A construção de um cenário político dual e maniqueísta, no qual somente duas visões do mundo são concebíveis, um grupo enquanto salvador da pátria e outro como sendo revestido de todos os males, representa o pior produto do comportamento cívico de uma sociedade que almeje avanços. Pode-se dizer, sem medo de errar, que a democracia perde muito com isso, pois, retomando ao cerne deste texto, intensifica-se um déficit de comunicação, aprofunda-se uma crise de comunicação, com impactos seríssimos para todo um projeto de país.
Uma sociedade não pode ser definida por um partido político, por uma eleição, muito menos por um líder – por mais carismático que seja. Como nos ensina Hannah Arendt, “(…) A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” [2]. A condição humana, que nos faz idênticos na qualidade de detentores do direito a ter direitos, é a mesma que nos evoca uma multiplicidade de formas de viver: com preferências de cores, sabores, com tradições próprias, prioridades distintas etc. A todos esses diferentes, a condição humana assegura o direito de participar, de expressar suas particularidades. No plano político, a democracia insiste em oportunizar essa participação no debate sobre os rumos do nosso país.
Com uma boa dose de idealismo, deseja-se que o futuro viabilize a comunicação entre os diferentes. Que os interlocutores tenham muitas ideias, mas, postas à mesa, essas mesmas ideias estejam passíveis de revisão, aperfeiçoamento, correção, adequação, ponderação. As verdades imutáveis, as respostas intocáveis e as opiniões absolutas são, muitas vezes, incompatíveis com o processo comunicativo.
É desejável que, no Brasil de hoje, todos compreendamos que o debate e a democracia são como gêmeos siameses, que são aqueles irmãos que nascem unidos em determinada região do corpo. O debate e a democracia são faces de uma mesma moeda, retalhos de uma mesma colcha, sonhos inerentes a um mesmo futuro almejado, qual seja, o de que um dia, pessoas com pensamento nítida e completamente opostos poderão sentar-se e, em um processo comunicativo respeitoso, poderão trocar ideias sobre o que há de melhor a se fazer para o bem da coletividade.
Erick Gomes (@erickgomesbm)
João Mendonça (@joaomendonca__)
- [1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 3º, IV. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 Jan. 2019.
- [2] ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Trad.: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 16