Ideia é enviar sugestões a parlamentares para regulamentar a possibilidade de “acolhimento” e “adoção” de idosos
Diante do avanço do envelhecimento da população, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos planeja apresentar ao Congresso uma proposta para permitir a adoção de idosos no país. A ideia é enviar sugestões a parlamentares para regulamentar a possibilidade de “acolhimento” e “adoção” de idosos em situação de vulnerabilidade e abandono.
A partir daí, a pasta pretende desenvolver políticas sobre o tema, afirma o secretário nacional de Direitos da Pessoa Idosa, Antônio Costa.
Um primeiro passo para a mudança ocorreu em dezembro, quando o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, que teve o número de conselheiros reduzido ao longo do ano, derrubou uma resolução de 2008 que impedia o poder público de ofertar o atendimento ao idoso no modelo de “família acolhedora”.
Agora, a pasta planeja debater uma regulamentação junto ao Congresso como “nova alternativa” diante do envelhecimento populacional.
Atualmente, cerca de 30 milhões de brasileiros têm acima de 60 anos. Dados do IBGE estimam que esse número atinja 73 milhões em 2060 –o que também faria a proporção dessa faixa etária na população geral passar de 14% para 32%. Ou seja, 1 em cada três brasileiros em 2060 será sexagenário ou mais velho.
“Com o aumento no envelhecimento, aumenta o abandono, e temos que buscar soluções”, afirma Costa. “Queremos avançar no que é discutido ou incluir uma proposta do governo sobre adoção para que esses idosos tenham mais uma opção além das instituições.”
O secretário diz ver uma brecha para o debate dentro do Estatuto do Idoso, em trecho que aponta “direito à moradia digna, no seio de família natural ou substituta”. A lei, porém, não traz um detalhamento sobre o tema.
Ao mesmo tempo, sugestões semelhantes começam a ganhar espaço no Congresso.
Nos últimos meses, ao menos três projetos que tratam dessa possibilidade passaram a tramitar na Câmara dos Deputados. Um deles, que prevê aplicar também para o idoso uma parte das regras de adoção definidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, foi alvo de uma audiência pública em dezembro.
Agora, o ministério analisa a possibilidade de tentar impulsionar a medida. Nas redes sociais, a ministra Damares Alves já definiu o tema como “um sonho que logo poderá ser realidade”.
A proposta, contudo, é vista com ressalvas por especialistas que atuam na área de envelhecimento e direito do idoso.
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), afirma que a proposta de dar aval a uma adoção de idosos é “ousada”, mas embute paradoxos e contradições.
“Não é tão simples. Falamos em adoção em um sentido técnico e jurídico de ocupar o lugar de pai e mãe. Se tenho 60 anos, vou ser pai de uma pessoa de 80?”, afirma.
Ele avalia como “mais viável” regular o apadrinhamento, nos moldes do que já é aplicado com crianças e adolescentes que esperam para adoção em abrigos.
Já a assistente social Marília Berzins, presidente do Observatório de Longevidade e Envelhecimento, diz ver risco de infantilização do idoso tanto na adoção quanto nesse modelo.
“Falar em adotar idoso é considerá-lo como criança. O que discutimos no envelhecimento é que o idoso é um sujeito pleno de direitos, até que se destitua esse direito por interdição”, afirma. “O idoso deve ter sua autonomia preservada. O envelhecimento não restringe essa capacidade.”
Para ela, o problema não está na falta de políticas públicas definidas para atendimento a idosos, mas em efetivá-las.
“Quando o Estado inventa uma adoção para idoso, ele está de novo responsabilizando a família pelo cuidado. É uma política pública ‘familista’, que dá as regras e cobra da família, mas não dá condições para a família cuidar dos que precisam”, diz a especialista, que também vê risco de interesse financeiro na adoção.
Preocupação semelhante tem Raphael Castelo Branco, da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), para quem a proposta deixa dúvidas.
“No caso de morte, a família biológica teria participação na herança? E a substituta, teria esse direito?”, questiona ele, que prevê ainda outros impasses, como o rompimento de vínculos familiares mantidos por décadas, ainda que distantes. “São questões que não foram amadurecidas.”
Autor do projeto que passou por debates, o deputado Ossésio Silva (Republicanos-PE) diz que a possibilidade de adoção visa assegurar o “direito ao convívio familiar” em um contexto de aumento no abandono de idosos –em referência ao avanço no número daqueles que vivem em instituições.
Já para Berzins, há preconceito com a necessidade de recorrer a instituições que abrigam idosos, alternativa necessária em alguns casos.
“Essa história de que ficar na família sempre é a melhor opção no envelhecimento não é uma verdade absoluta. Idealizamos que o lar é o melhor lugar e o amor reina, e nem sempre é verdade. Com a redução do número de filhos, a família não vai dar conta mais de cuidar. E a instituição será uma das opções”, diz.
“Precisamos romper com o preconceito de que instituição de longa permanência é o ‘pior lugar’ e ‘depósito de velhos’. São ideias antigas. Muitos dos jovens de hoje, quando estiverem velhos, passarão seus últimos anos em ILPIs [Instituições de Longa Permanência para Idosos]. Precisamos investir para que essas instituições sejam lugar de morar, e não de morrer.”
Outra dúvida é definir quem poderia estar apto à adoção e a ser adotado, afirma a advogada Maria Luiza Póvoa da Cruz, que faz parte do Conselho Nacional do Idoso. “Se o idoso está com a capacidade cognitiva comprometida, é ainda mais complicado.”
Para ela, a proposta é positiva ao tentar buscar alternativas, mas é preciso verificar a real viabilidade. “É bonito, mas não podemos ficar somente na utopia.”
Questionado sobre o apoio a políticas atuais, o secretário Antônio Costa afirma que o ministério tem projetos de ampliar o investimento em modelos de acolhimento como centros-dia, em que o idoso pode desenvolver atividades durante o dia e voltar para casa à noite.
“Mas aí encontramos aqueles idosos que não têm para onde voltar”, afirma ele, sobre os motivos que levam a analisar a medida.
Dados do Ministério da Cidadania, que responde pela assistência social no governo federal, apontam 62.980 idosos em unidades de acolhimento conveniadas a estados e municípios, a maioria em instituições de longa permanência (nome pelo qual passaram a ser chamados os antigos asilos).
Procurada pela reportagem para comentar a proposta do Ministério da Família, a pasta diz que não está participando da discussão. Afirma coordenar debates sobre acolhimento de idosos junto a gestores estaduais e municipais na área de assistência social para avançar na garantia de direitos a esse público.